25 de fevereiro de 2022

Literatura e Carnaval

Sexta-feira, véspera de carnaval e em tempos de (ainda) pandemia. Nos resguardaremos dos excessos da folia para aproveitar um pouco mais de um tempo livre (aqueles que podem, claro!). Mas já que não vestiremos a fantasia do corpo, quem sabe a nossa mente não se vestirá com alguma alegoria e sairá por aí atrás do bloco da imaginação...

Muitos escritores se inspiraram no tema "carnaval" em suas obras e, pensando sobre isso e, também,  para dar ritmo a nossa "folia literária', apresento dois textos, um poema e um conto, de dois "grandes", que amo,  da literatura brasileira: Carlos Drummond de Andrade e Clarice Lispector. 

Aproveitem e bom carnaval!!


Um homem e seu Carnaval

Deus me abandonou
no meio da orgia
entre uma baiana e uma egípcia.
Estou perdido.
Sem olhos, sem boca
sem dimensões.
As fitas, as cores, os barulhos
passam por mim de raspão.
Pobre poesia.

O pandeiro bate
é dentro do peito
mas ninguém percebe.
Estou lívido, gago.
Eternas namoradas
riem para mim
demonstrando os corpos,
os dentes.
Impossível perdoá-las,
sequer esquecê-las.

Deus me abandonou
no meio do rio.
Estou me afogando
peixes sulfúreos
ondas de éter
curvas curvas curvas
bandeiras de préstitos
pneus silenciosos
grandes abraços largos espaços
eternamente.

(Carlos Drummond de Andrade, em "Brejo das Almas")


Restos do carnaval

Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.

No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança perfume e um saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.

E as máscaras? Eu tinha medo mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim.

Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos durante três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça – eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável – e pintava minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.

Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa, com as quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à fantasia tomando forma e se criando. Embora de pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.

Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de minha amiga – talvez atendendo a meu apelo mudo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já que sobrara papel – resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o que restara de material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.

Até os preparativos já me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira tão ocupada: minuciosamente, minha amiga e eu calculávamos tudo, embaixo da fantasia usaríamos combinação, pois se chovesse e a fantasia se derretesse pelo menos estaríamos de algum modo vestidas – à idéia de uma chuva que de repente nos deixasse, nos nossos pudores femininos de oito anos, de combinação na rua, morreríamos previamente de vergonha – mas ah! Deus nos ajudaria! Não choveria! Quanto ao fato de minha fantasia só existir por causa das sobras de outra, engoli com alguma dor meu orgulho que sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o destino me dava de esmola.

Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico? De manhã cedo no domingo, eu já estava de cabelos enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem. Mas os minutos não passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! Chegaram três horas da tarde: com cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti de rosa.

Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No entanto essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge – minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa – mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil – fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava.

Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.

Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos já lisos, de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.

(Clarice Lispector, em "Felicidade Clandestina")



21 de janeiro de 2022

O mundo na visão de Mario Quintana

Mario Quintana é um dos meus autores preferidos por sua versatilidade, lirismo e bom humor. Costuma deixar sempre em seus textos, ora em prosa, ora em poesia, a sua expressão de observador do cotidiano. A Sexta Poética de hoje, na página do meu Instagram (@leiturasliteratura) traz "O mundo de Deus" e aqui complemento com mais alguns textos sobre o Mundo na visão do poeta. 

Para refletir e se deliciar!


O mundo de Deus

Aquele astronauta americano que anunciou ter encontrado Deus na lua é no fim de contas menos simplório do que os primeiros astronautas russos, os quais declararam, ao voltar, não terem visto Deus no céu. 

Porque, se Deus é paz e paz é silêncio afinal, deve Ele estar mesmo muito mais na lua do que nas metrópoles terrenas.

E, pelo que me toca, a verdade é que nunca pude esquecer estas palavras de um personagem de Balzac:

"O deserto é Deus sem os homens."


O mundo

A coisa começou desde os dias já remotos da invenção do telégrafo. Depois foi o TSF, o rádio, a TV, etc. E o Tempo, atônito, engulindo o Espaço. E esse vasto mundo diminuindo, diminuindo, diminuindo... até se vir esconder covardemente dentro do nosso quarto.


Mapa-múndi

A facilidade de comunicações acabou com esses tanques em que floresciam as diferentes culturas.

Quando antes se olhava o mapa-múndi e via-se cada país de um colorido diferente, podia-se tomar isso ao pé da letra. É verdade que o mundo continuou a ser uma concha de retalhos; mas são todos da mesma cor. Bombaim, Roma, Tóquio, que se escondiam, cada um com seu peculiar mistério, nos compartimentos estanques da sua própria civilização, agora, a julgar pelos filmes, estão perfeitamente padronizados, universalizados. 

E, no mundo de hoje, para desconsolo dos descendentes de Sindbad e de Marco Polo, a única cor local das cidades famosas são os turistas. 


O outro mundo

Por favor, deixa o Outro Mundo em paz! O mistério está aqui.


História do fim do mundo

Cinco minutos depois que todas as nações do mundo decretaram mobilização geral, houve 

mobilização geral.


📙(Trechos do livro "Caderno H", Editora Globo)




13 de janeiro de 2022

Sexta Poética

Um novo ano de paz, saúde e muitas leituras a todos! 

Olá, leitores.
Quero dividir com vocês um espaço que tenho no Instagram (@leiturasliteratura): a Sexta Poética. Todas as sextas-feiras publico uma poesia, declamada em vídeo ou em texto. Desta vez, o autor escolhido foi o querido Elias José, um poeta muito conhecido da literatura infantil. Eu, particularmente, adoro! 
O livro escolhido é "Amor Adolescente" e a poesia lida será a "Na Gaveta". Como "bônus" deixo aqui mais duas poesias para vocês saborearem mais um pouco dessa doçura de poeta. 



Na Gaveta 💍📜

Nesta gaveta guardo
metade do meu mundo:
fotos, fatos, joias,
cartas de tarô, desenhos,
bilhetes de namorados, canções,
recados de amigas, poemas,
florais, defumadores,
cristais, flores secas,
o meu diário
com mil segredos anotados
e mil bugigangas
inúteis para os outros
mas riquezas para mim.

Falta na minha gaveta
o retrato de uma pessoa
que me fará esquecer de tudo,
até desta minha gaveta.


Dia de Sol 🌞

Um dia de sol
é um dia sem açúcar
nem sal.

Um dia sem sol
é picolé sem gelo,
é noite sem lua,
é história parada,
é fada enfadada,
é bruxa dorminhoca,
é domingo sem mesada,
é boletim com vermelha,
é um galo mudo,
é fantasma aposentado,
é falta de graça em tudo.

Um dia de sol
é um presente dos céus!



Observação 💖💔


Engraçado, muito engraçado,
todo o dia a gente fala:
"Estou morrendo de amor!"
e a vida fica mais intensa.

Tenho medo de um dia dizer:
"Estou vivendo sem amor!"
e a vida ficar muito vazia.



Para saber mais sobre o escritor e professor Elias José, acesse:



9 de outubro de 2021

No Dia da Criança: dê livros!!

 Livros:

  • Não precisam recarregar;
  • Não quebram; 
  • Não tem prazo de validade;
  • Não fazem mal à saúde;
  • São divertidos;
  • Estimulam à imaginação;
  • Estimulam à criatividade;
  • Desenvolvem o intelecto;
  • Pode levar a qualquer lugar.
Há presente melhor?


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