30 de julho de 2011

Das vantagens de ser bobo

 O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar o mundo. O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: "Estou fazendo. Estou pensando."

 Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a ideia.

 O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não veem. Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os veem como simples pessoas humanas. O bobo ganha utilidade e sabedoria para viver. O bobo nunca parece ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoievski.

 Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era de que o aparelho estava tão estragado que o conserto seria caríssimo: mais valia comprar outro. Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e portanto estar tranquilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado. O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo não percebe que venceu.

 Aviso: não confundir bobos com burros. Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a célebre frase: "Até tu, Brutus?"
Bobo não reclama. Em compensação, como exclama!

 Os bobos, com todas as suas palhaçadas, devem estar todos no céu. Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz.

 O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos. Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos. Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham a vida. Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás não se importam que saibam que eles sabem.

 Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, com tolo, com fútil). Minas Gerais, por exemplo, facilita ser bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas!

 Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas. É quase impossível evitar excesso de amor que o bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.

(Clarice Lispector)


E eu? Continuarei a ser boba...

27 de julho de 2011

Drummond, a minha paixão!

Aula de Português

A linguagem
na ponta da língua,
tão fácil de falar
e de entender.
A linguagem
na superfície estrelada de letras,
sabe lá o que ela quer dizer?
Professor Carlos Góis, ele é quem sabe,
e vai desmatando
o amazonas de minha ignorância.
Figuras de gramática, esquipáticas,
atropelam-me, aturdem-me, sequestram-me.
Já esqueci a língua em que comia,
em que pedia para ir lá fora,
em que levava e dava pontapé,
a língua, breve língua entrecortada
do namoro com a prima.
O português são dois; o outro, mistério.

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Mudança

O que muda na mudança,
se tudo em volta é uma dança
no trajeto da esperança,
junto do que nunca se alcança?


Lembrete

Se procurar bem, você acaba encontrando
não a explicação (duvidosa) da vida
mas a poesia (inexplicável) da vida.


História Natural

Cobras cegas são notívagas.
O orangotango é profundamente solitário.
Macacos também preferem o isolamento.
Certas árvores só frutificam de 25 em 25 anos.
Andorinhas copulam no voo.
O mundo não é o que pensamos.

Andrade, Carlos Drummond. Corpo. Rio de Janeiro: Record, 1984.  


24 de julho de 2011

A nossa alma feminina chama-se Clarice

O meu primeiro contato com este lindo texto de Clarice foi através da voz de Juca de Oliveira. Foi paixão à primeira vista. Procurei o texto pela internet e de novo, enamorada, absorvi cada palavra, cada sentido. Precisamos da mudança, precisamos do novo, do frio na barriga, e como a autora afirma: a salvação é pelo risco! Então, o que está esperando?

MUDANÇA

Mude, mas comece devagar,
porque a direção é mais importante que a
velocidade.

Sente-se em outra cadeira, no outro lado da mesa.
Mais tarde, mude de mesa.

Quando sair, procure andar pelo outro lado da rua.
Depois, mude de caminho, ande por outras ruas,
calmamente, observando com
atenção os lugares por onde você passa.

Tome outros ônibus.

Mude por uns tempos o estilo das roupas.
Dê os seus sapatos velhos.
Procure andar descalço alguns dias.
Tire uma tarde inteira para passear livremente na praia,
ou no parque, e ouvir o canto dos passarinhos.

Veja o mundo de outras perspectivas.

Abra e feche as gavetas e portas com a mão esquerda.
Durma no outro lado da cama...
Depois, procure dormir em outras camas
Assista a outros programas de tv,
compre outros jornais... leia outros livros.

Viva outros romances.
Não faça do hábito um estilo de vida.
Ame a novidade.
Durma mais tarde.
Durma mais cedo.

Aprenda uma palavra nova por dia numa outra língua.
Corrija a postura.
Coma um pouco menos, escolha comidas diferentes,
novos temperos, novas cores, novas delícias.

Tente o novo todo dia.
O novo lado, o novo método, o novo sabor,
o novo jeito, o novo prazer, o novo amor.

A nova vida.
Tente.
Busque novos amigos.
Tente novos amores.
Faça novas relações.

Almoce em outros locais,
vá a outros restaurantes,
tome outro tipo de bebida,
compre pão em outra padaria.

Almoce mais cedo,
jante mais tarde ou vice-versa.

Escolha outro mercado... outra marca de sabonete,
outro creme dental...
Tome banho em novos horários.

Use canetas de outras cores.
Vá passear em outros lugares.

Ame muito,
cada vez mais,
de modos diferentes.

Troque de bolsa, de carteira, de malas,
troque de carro, compre novos
óculos, escreva outras poesias.

Jogue os velhos relógios,
quebre delicadamente
esses horrorosos despertadores.

Abra conta em outro banco.
Vá a outros cinemas, outros cabeleireiros,
outros teatros, visite novos museus.

Mude.
Lembre-se de que a Vida é uma só.
E pense seriamente em arrumar um outro emprego,
uma nova ocupação,
um trabalho mais light, mais prazeroso,
mais digno, mais humano.

Se você não encontrar razões para ser livre, invente-as.
Seja criativo.
E aproveite para fazer uma viagem despretensiosa,
longa, se possível sem destino.

Experimente coisas novas.
Troque novamente.
Mude, de novo.
Experimente outra vez.

Você certamente conhecerá coisas melhores
e coisas piores do que as já
conhecidas, mas não é isso o que importa.

O mais importante é a mudança,
o movimento, o dinamismo, a energia.

Só o que está morto não muda !
Repito por pura alegria de viver: a salvação é pelo risco,
sem o qual a vida não vale a pena !!!

 
(Clarice Lispector)

23 de julho de 2011

Sobre o blog

Há muito tempo, eu estava planejando um novo blog, o outro "Sopa de Entulho", sofrerá algumas modificações, mas não vou excluí-lo, é o primeiro, o meu xodó. Neste novo blog, a palavra é a arte. Quero postar as coisas que gosto de ler e dividi-las com vocês: poesia, prosa, crônicas, reflexões, opiniões, dicas, tudo isso e mais um pouco.
Um espaço onde a palavra é livre.
Conto com a colaboração de vocês, com comentários, dicas, sugestões, críticas etc.
Quero um blog vivo!
Viva a leitura e a literatura!


Minhas últimas leituras, pela ordem que li:

COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
COUTO, Mia. O último voo do flamingo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
CASTRO, Rui. Crônicas para ler na escola. Rio de Janeiro: Objetiva., 2010.
ZUSAK, Markus. A menina que roubava livros. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2010.
ANDRADE, Mário de. Amar, Verbo Intransitivo. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002.
CARROLL, Lewis. Alice no País das Maravilhas & Através do Espelho. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

Não consta nesta lista acima, o que eu li para os estudos da pós-graduação, sobre literatura infantil, etc...

Quem sou eu?
Sou carioca da gema, tricolor e suburbana. Tenho fome de letras e sou curiosa por natureza!

Abraços e sejam bem-vindos!!

Prenominais

Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da nação brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro.
(Oswald de Andrade)

O que acontece com as crianças

  Aprendi a escrever lendo, da mesma forma que se aprende a falar ouvindo. Naturalmente, quase sem querer, numa espécie de método subliminar. Em meus tempos de criança, era aquela encantação. Lia-se continualmente e avidamente um mundaréu de histórias (e não estórias) principalmente as do Tico-Tico. Mas lia-se corrido, isto é, frase, após frase, do princípio ao fim.
  Ora, as crianças de hoje não se acostumam a ler corretamente, porque apenas olham as figuras dessas histórias em quadrinhos, cujo "texto" se limita a simples frase interjetivas e assim mesmo muita vez incorretas. No fundo, uma fraseologia de guinchos e uivos, uma subliteratura de homem das cavernas.
  Exagerei? Bem feito! Mas se essas crianças, coitadas, nunca adquirirem o hábito de leitura, como saberão um dia escrever?

QUINTANA, Mário. Caderno H. São Paulo: Globo, 2006. p.66.