No dia 3 de março, foi a estreia do meu programa "Café com Literatura" em parceria com a Rádio Luz Radionica (https://www.radioluzradionica.com.br/). Recebi o convite da rádio em janeiro deste ano e aceitei sem titubear. Essa ideia de ler textos literários já havia passado pela minha cabeça, mas ainda não tinha ainda ideia de como poderia fazer isso. Pensei em fazer lives na minha página do Instagram (@leiturasliteratura), mas não tinha o formato definido na minha cabeça e de como iria me organizar para isso. Daí veio esse inesperado convite da Rádio Luz Radionica, através da Soninha. A Rádio Luz é uma rádio holística que abraça diversas terapias para o autoconhecimento. Onde eu me encaixo nisso, perguntarão vocês? Eu responderei com as palavras da Soninha "todas as formas de conhecimento passam por livros". Sim, e por que não falar de literatura? Essa é a proposta: levar o ouvinte a um momento de pausa, como um bom café no fim de tarde, para ouvir um texto que inspire e que incentive a ler literatura.
O programa será todas as quintas-feiras, às 17 horas, na Rádio Web da Rádio Luz Radionica: https://linktr.ee/Radioluzradionica
E no Canal da Rádio Luz Radionica no Youtube:
https://www.youtube.com/c/R%C3%A1dioLuzRadionica/about?sub_confirmation=1
Na medida do possível, disponibilizarei aqui todos os textos lidos nos programas. E o primeiro texto de estreia foi "Felicidade Clandestina", de Clarice Lispector. No programa, além dos textos, há informações e dicas sobre o universo da literatura.
Convido a todos vocês para desfrutarem desse momento. Aproveitem e se inscrevam no canal para não perderem a programação incrível. Até lá!
Felicidade Clandestina
Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos
excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós
todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse enchia os dois bolsos da
blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança
devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para
aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos
um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife
mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com
letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”.
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda
era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos
odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de
cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha
ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a
implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a
exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que
possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se
ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas
posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o
emprestaria.
Até o dia seguinte eu me transformei na própria
esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas
me levavam e me traziam.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente
correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou
entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a
outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí
devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua
a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife.
Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias
seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me
esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto
da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá
estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a
resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia
seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia
seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia
que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo
grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às
vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me
fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem
faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de
tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu,
que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos
espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua
casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia
estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa.
Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de
palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de
não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e
com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você
nem quis ler!
E o pior para essa mulher não era a descoberta do
que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos
espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a
menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então
que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai
emprestar o livro agora mesmo. E para mim: “E você fica com o livro por quanto
tempo quiser. ”Entendem? Valia mais do que me dar o livro: pelo tempo que eu
quisesse ” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de
querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada,
e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não,
não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro
grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até
chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não
o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas
linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais
indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro,
achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para
aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser
clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no
ar… havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o
livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma
mulher com o seu amante.