No 3º programa "Café com Literatura" do mês de março, que homenageei as escritoras brasileiras, por ser o mês das mulheres, foi a vez da autora premiada Marina Colasanti. Como não se encantar com essa narrativa cheia de sutilezas e uma boa dose de magia?
A moça tecelã
Linha clara,
para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre
os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o
horizonte.
Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava.
Se era forte
demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira
grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra
trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava
sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.
Mas se durante
muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros,
bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a
acalmar a natureza.
Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias.
Nada lhe
faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de
escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido.
Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à
noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranquila.
Tecer era
tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.
Mas tecendo
e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira
vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado.
Não esperou
o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida,
começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos
poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo
aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o
último fio da ponto dos sapatos, quando bateram à porta.
Nem precisou
abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi
entrando em sua vida.
Aquela
noite, deitada no ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para
aumentar ainda mais a sua felicidade.
E feliz foi,
durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os
esqueceu. Porque tinha descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a
não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.
— Uma casa
melhor é necessária — disse para a mulher. E parecia justo, agora que
eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios
verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer.
Mas pronta a
casa, já não lhe pareceu suficiente.
— Para que ter casa, se podemos ter
palácio? — perguntou. Sem querer resposta imediatamente ordenou que fosse
de pedra com arremates em prata.
Dias e dias,
semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e
salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A
noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e
entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da
lançadeira.
Afinal o
palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear
o mais alto quarto da mais alta torre.
— É para que
ninguém saiba do tapete — ele disse. E antes de trancar a porta à chave,
advertiu: — Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!
Sem descanso
tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres
de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era
tudo o que queria fazer.
E tecendo,
ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio
com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou em como seria bom
estar sozinha de novo.
Só esperou
anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências.
E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao
tear.
Desta vez
não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e
jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido.
Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois
desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente
se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.
A noite
acabava quando o marido estranhando a cama dura, acordou, e, espantado, olhou
em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro
dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido,
o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.
Então, como
se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi
passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na
linha do horizonte.
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