9 de julho de 2013

Crônica de Carlos Drummond de Andrade

                                          Anúncio de João Alves

          Figura o anúncio em um jornal que o amigo me mandou, e está assim redigido:

         À procura de uma besta. — A partir de 6 de outubro do ano cadente, sumiu-me uma besta vermelho-escura com os seguintes característicos: calçada e ferrada de todos os membros locomotores, um pequeno quisto na base da orelha direita e crina dividida em duas seções em consequência de um golpe, cuja extensão pode alcançar de 4 a 6 centímetros, produzido por jumento.

         Essa besta, muito domiciliada nas cercanias deste comércio, é muito mansa e boa de sela, e tudo me induz ao cálculo de que foi roubada, assim que hão sido falhas todas as indagações.
Quem, pois, apreendê-la em qualquer parte e a fizer entregue aqui ou pelo menos notícia exata ministrar, será razoavelmente remunerado. Itambé do Mato Dentro, 19 de novembro de 1899. (a) João Alves Júnior.

          55 anos depois, prezado João Alves Júnior, tua besta vermelho-escura, mesmo que tenha aparecido, já é pó no pó. E tu mesmo, se não estou enganado, repousas suavemente no pequeno cemitério de Itambé. Mas teu anúncio continua um modelo no gênero, se não para ser imitado, ao menos como objeto de admiração literária.
         Reparo antes de tudo na limpeza de tua linguagem. Não escreveste apressada e toscamente, como seria de esperar de tua condição rural. Pressa, não a tiveste, pois o animal desapareceu a 6 de outubro, e só a 19 de novembro recorreste à Cidade de Itabira. Antes, procedeste a indagações. Falharam. Formulaste depois um raciocínio: houve roubo. Só então pegaste da pena, e traçaste um belo e nítido retrato da besta.
         Não disseste que todos os seus cascos estavam ferrados; preferiste dizê-lo “de todos os seus membros locomotores”. Nem esqueceste esse pequeno quisto na orelha e essa divisão da crina em duas seções, que teu zelo naturalista e histórico atribuiu com segurança a um jumento.
         Por ser “muito domiciliada nas cercanias deste comércio”, isto é, do povoado e sua feirinha semanal, inferiste que não teria fugido, mas antes foi roubada. Contudo, não o afirmas em tom peremptório: “tudo me induz a esse cálculo”. Revelas aí a prudência mineira, que não avança (ou não avançava) aquilo que não seja a evidência mesma. É cálculo, raciocínio, operação mental e desapaixonada como qualquer outra, e não denúncia formal.
        Finalmente — deixando de lado outras excelências de tua prosa útil — a declaração final: quem a apreender ou pelo menos “notícia exata ministrar”, será “razoavelmente remunerado”. Não prometes recompensa tentadora; não fazes praça de generosidade ou largueza; acenas com o razoável, com a justa medida das coisas, que deve prevalecer mesmo no caso de bestas perdidas e entregues.
       Já é muito tarde para sairmos à procura de tua besta, meu caro João Alves do Itambé; entretanto essa criação volta a existir, porque soubeste descrevê-la com decoro e propriedade, num dia remoto, e o jornal a guardou e alguém hoje a descobre, e muitos outros são informados da ocorrência. Se lesses os anúncios de objetos e animais perdidos, a imprensa de hoje, ficarias triste. Já não há essa precisão de termos e essa graça no dizer, nem essa moderação nem essa atitude crítica. Não há, sobretudo, esse amor à tarefa bem feita, que pode manifestar até mesmo num anúncio de besta sumida.
  
(Texto do livro "Fala, Amendoeira", de Carlos Drummond de Andrade)

7 de julho de 2013

Pechada

O apelido foi instantâneo. No primeiro dia de aula, o aluno novo já estava sendo chamado de "Gaúcho". Porque era gaúcho. Recém-chegado do Rio Grande do Sul, com um sotaque carregado.
— Aí, Gaúcho!
— Fala, Gaúcho!
Perguntaram para a professora por que o Gaúcho falava diferente. A professora explicou que cada região tinha seu idioma, mas que as diferenças não eram tão grandes assim. Afinal, todos falavam português. Variava a pronúncia, mas a língua era uma só. E os alunos não achavam formidável que num país do tamanho do Brasil todos falassem a mesma língua, só com pequenas variações?
— Mas o Gaúcho fala "tu"! — disse o gordo Jorge, que era quem mais implicava com o novato.
— E fala certo — disse a professora. — Pode-se dizer "tu" e pode-se dizer "você". Os dois estão certos. Os dois são português.
O gordo Jorge fez cara de quem não se entregara.
Um dia o Gaúcho chegou tarde na aula e explicou para a professora o que acontecera.
— O pai atravessou a sinaleira e pechou.
— O que?
— O pai. Atravessou a sinaleira e pechou.
A professora sorriu. Depois achou que não era caso para sorrir. Afinal, o pai do menino atravessara uma sinaleira e pechara. Podia estar, naquele momento, em algum hospital. Gravemente pechado. Com pedaços de sinaleira sendo retirados do seu corpo.
— O que foi que ele disse, tia? — quis saber o gordo Jorge.
— Que o pai dele atravessou uma sinaleira e pechou.
— E o que é isso?
— Gaúcho... Quer dizer, Rodrigo: explique para a classe o que aconteceu.
— Nós vinha...
— Nós vínhamos.
— Nós vínhamos de auto, o pai não viu a sinaleira fechada, passou no vermelho e deu uma pechada noutro auto.
A professora varreu a classe com seu sorriso. Estava claro o que acontecera? Ao mesmo tempo, procurava uma tradução para o relato do gaúcho. Não podia admitir que não o entendera. Não com o gordo Jorge rindo daquele jeito.
"Sinaleira", obviamente, era sinal, semáforo. "Auto" era automóvel, carro. Mas "pechar" o que era? Bater, claro. Mas de onde viera aquela estranha palavra? Só muitos dias depois a professora descobriu que "pechar" vinha do espanhol e queria dizer bater com o peito, e até lá teve que se esforçar para convencer o gordo Jorge de que era mesmo brasileiro o que falava o novato. Que já ganhara outro apelido: Pechada.
— Aí, Pechada!
— Fala, Pechada!


(Luís Fernando Veríssimo)

 

A Crônica

A crônica surge na transição da Idade Média para o Renascimento como registro da história e da vida dos reis. Tornou-se, a partir do século XIX, o gênero preferido dos autores literários integrados à atividade jornalística.
Podemos destacar diversos autores da literatura brasileira que escreveram crônicas: Machado de Assis, João do Rio, Rubem Braga, Rachel de Queiroz, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Carlos Drummond de Andrade, Alcântara Machado, Cecília Meireles, Clarice Lispector etc.
A crônica, geralmente, é um texto curto, narrado em primeira pessoa, ou seja, o autor dialoga com o leitor.
O cronista transmite aos seus leitores a sua visão de mundo, muitas vezes, com uma linguagem informal, espontânea e baseada em fatos cotidianos.
Outros nomes importantes da crônica brasileira que ainda estão em atividade: João Ubaldo Ribeiro, Carlos Eduardo Novaes, Carlos Heitor Cony, Marina Colasanti, Mario Prata, Ruy Castro, Luís Fernando Veríssimo etc.
 
"Gênero supostamente menor, a crônica é lida por um público infinitamente maior que o do romance ou da poesia, um público que se renova sem cessar. Gênero efêmero, atravessa galhardamente os anos, a até os séculos, assumindo funções que se sucedem, como as de distrair, informar, testemunhar, documentar, fixar a evolução do escritor e da língua, o espírito da época." (Fausto Cunha - escritor)


Sugestões de livros:
As Cem Melhores Crônicas Brasileiras. Diversos autores. Editora Objetiva
As Melhores Crônicas de Fernando Sabino. Editora Bestbolso
Cecília Meireles: Crônicas para jovens. Editora Global
Clarice na Cabeceira: crônicas. Clarice Lispector. Editora Rocco
Coleção "Para Gostar de Ler - Crônicas Vol. I ao VI". Editora Ática
Coleção "Crônicas para se ler na escola". Diversos autores. Editora Objetiva
Coleção "Crônicas para Jovens". Clarice Lispector. Editora Rocco
Coleção "Antologia de Crônicas". Editora Salamandra
Comédias para se ler na escola. Luís Fernando Veríssimo. Editora Objetiva
Rick e a girafa. Carlos Drummond de Andrade. Editora Ática
Paulo Mendes Campos: primeiras leituras. Editora Boa Companhia




 

30 de junho de 2013

No país do futebol

Juvenal Ouriço aproximou-se de um vendedor parado à porta de uma loja de eletrodomésticos e perguntou:
- Qual desses oito televisores os senhores vão ligar na hora do jogo?
- Qualquer um - disse o vendedor desinteressado.
- Qualquer um não. Eu cheguei com duas horas de antecedência e mereço uma certa consideração.
- Pra que o senhor quer saber?
- Para já ir tomando posição diante dele.
O vendedor apontou para um aparelho. Juvenal observou os ângulos, pegou a almofada que o acompanha ao Maracanã e sentou-se no meio da calçada.
- Ei, ei, psiu - chamou-o um mendigo recostado na parede da loja - como é que é, meu irmão?
- Que foi? - perguntou Juvenal.
- Quer me botar na miséria? Esse ponto aqui é meu.
- Eu não vou pedir esmola.
- Então senta aqui ao meu lado.
- Aí não vai dar para eu ver o jogo.
- Na hora do jogo nós vamos lá pra casa.
- Você tem TV a cores?
- Claro. Você acha que eu fico me matando aqui pra quê?
Juvenal agradeceu. Disse que preferia ficar na loja onde tinha marcado encontro com uns amigos que não via desde a final da Copa de 78. O mendigo entendeu. E como gostou de Juvenal, lhe deu o chapéu onde recolhia esmolas. Juvenal, distraído, enfiou-o na cabeça.
- Não, não. Na cabeça não.
- Por que não?
- Já viu mendigo usar chapéu na cabeça? Deixe-o aí no chão. Sempre pinga qualquer coisa.
Aos poucos o público foi aumentando, operários, vendedores, contínuos, vagabundos e às 15h45 já não havia mais lugar diante das lojas de eletrodomésticos. Os retardatários corriam de uma para outra à procura de uma brecha. Alguns ficavam pulando atrás da multidão tentando enxergar a tela do aparelho.
- Quer que eu lhe ajude? - perguntou um cidadão já meio irritado com um contínuo pulando rente às suas costas.
- Quero.
- Então me diz onde é o seu controle da vertical.
- Controle da vertical, pra quê?
- Pra ver se você para de pular aqui nas minhas costas.
As lojas concentravam multidões. As calçadas da cidade, que já são poucas, desapareciam completamente. Em jogos da Seleção Brasileira, durante a semana, cresce bastante o número de atropelamentos porque o pedestre é obrigado a circular pelas ruas. Além disso, os motoristas ficam muito mais ligados no rádio do que no trânsito.
Na porta da loja onde estava Juvenal havia umas 200 pessoas do lado de fora e somente uma do lado de dentro: o gerente. Até os vendedores da loja já tinham se bandeado afirmando que assistir um jogo atrás da televisão não é a mesma coisa que vê-lo atrás do gol. Quando a bola saía entravam os comentários dos torcedores.
No início do segundo tempo, um cidadão que não se interessava por futebol (um dos 18 que a cidade abriga) foi pedindo licença à galera e com muita dificuldade conseguiu entrar na loja. O gerente foi ao seu encontro: "O senhor deseja algo?"
- Um aparelho de televisão.
- Por que o senhor não leva aquele?
- Qual?
- Aquele que está ligado ali na porta.
- É bom?
- O senhor ainda pergunta? Acha que haveria 200 pessoas diante dele se não tivesse uma boa imagem?
- Bem...
- E não é só isso - completou o gerente aproveitando a euforia do público com um gol do Brasil - que outro aparelho transmite emoções tão fortes?
- Essa gritaria toda foi diante do aparelho?
- Lógico. Esse é o novo televisor AP-007 dotado de controle de emoção. Só este televisor pode levá-lo do choro convulsivo à completa euforia.
- É mesmo? E se eu desejar vê-lo sentado quietinho na poltrona?
- Também pode, mas é aconselhável desligar o botão da emoção, se não o senhor não vai conseguir ficar quietinho na poltrona.
O cidadão convenceu-se. Disse que ia levá-lo. O gerente, precavido, pediu-lhe para ir à porta da loja apanha-lo. O cidadão não teve dúvidas. Ignorando aquela massa toda diante do seu aparelho, foi lá tranquilamente e cleck. Desligou-o.
O que aconteceu depois eu deixo por conta da imaginação de vocês.


(Carlos Eduardo Novaes)