7 de setembro de 2013

Ferreira Gullar - a poética da resistência

O poeta Ferreira Gullar, pseudônimo de José Ribamar Ferreira, nasceu em 10 de setembro de 1930, na cidade de São Luiz, Maranhão.
É, também, crítico de arte, biógrafo, tradutor, memorialista e ensaísta.
Participou no Rio de Janeiro do movimento da poesia concreta.
Foi um dos fundadores do neoconcretismo, movimento artístico-literário, surgido como uma forma de reagir aos excessos trazidos pelo concretismo. Enquanto o concretismo era extremamente racional, o neoconcretismo trouxe a subjetividade de volta ao processo de criação artística.
Em 1960, Ferreira Gullar abandonou, também, o neoconcretismo por concluir que o movimento levaria ao abandono do vínculo entre a palavra e a poesia. Assim, passou a produzir uma poesia engajada e envolveu-se com os Centros Populares de Cultura.
Ganhou vários prêmios literários, entre eles, o Prêmio Jabuti, em outubro de 2011, com o livro de poesia "Em Alguma Parte Alguma", considerado "o Livro do Ano" de ficção.

  
Agosto 1964
Entre lojas de flores e de sapatos, bares
mercados, butiques.
viajo
num ônibus Estrada de Ferro-Leblon.
Volto do trabalho, a noite em meio,
fatigado de mentiras.

O ônibus sacoleja. Adeus, Rimbaud,
relógio de lilases, concretismo,
neoconcretismo, ficções da juventude, adeus,
que a vida
eu a compro à vista aos donos do mundo.
Ao peso dos impostos, o verso sufoca,
a poesia agora responde a inquérito policial-militar.

Digo adeus à ilusão
mas não ao mundo. Mas não à vida,
meu reduto e meu reino.
Do salário injusto,
da punição injusta
da humilhação, da tortura,
do terror,
retiramos algo e com ele construímos um artefato

um poema
uma bandeira
      *****
Para saber mais sobre a biografia do autor, acesse:
http://www.releituras.com/fgullar_bio.asp

                                   
"Poema Sujo", escrito no exílio,
em Buenos Aires.


"Uma parte de mim é só vertigem: outra parte, linguagem."
                                                                       (Ferreira Gullar)

22 de agosto de 2013

Dia do Folclore

Folclore é o conjunto de tradições, conhecimentos ou crenças de um povo, expressos por suas lendas, canções e costumes.
A palavra folclore é derivada das palavras em inglês: "folk" (povo) e "lore" (conhecimento). O termo foi criado por um pesquisador europeu William John Thoms (1803-1885), em 1846, ao publicar um artigo intitulado "Folk-lore".
No Brasil, o Dia do Folclore  é comemorado em  22 de agosto.  A data foi criada em 1965 por decreto federal. Em São Paulo, um decreto estadual instituiu agosto como o mês do folclore.
Os elementos folclóricos são transmitidos de geração a geração. São manifestações populares como festas, danças, superstições, crenças, contos populares, provérbios, adivinhações, artigos de artesanatos, cantigas, brincadeiras infantis, alimentos, dentre várias outras. Pode variar de região para região, de grupo social e etnia.
Conhecer o folclore de um país, é conhecer o seu povo. Mas para que um costume seja considerado folclore, segundo estudiosos, é preciso que este seja praticado por um grande número de pessoas  e que tenha origem anônima.
 
Monteiro Lobato, Câmara Cascudo, Herberto Sales, Ricardo Azevedo são alguns exemplos de autores que enriquecem a nossa literatura com o tema do folclore.

A seguir, algumas sugestões de livros:
O Boto - Coleção Histórias do Rio Moju. Abramovich, Fanny. Ed.: FTD
Meu Livro de Folclore. Azevedo, Ricardo. Ed.: Ática.
Armazém do Folclore. Azevedo, Ricardo. Ed.: Ática.
Antologia do Folclore Brasileiro - volumes 1 e 2. Cascudo, Luis da Câmara. Ed.: Global.
O Lobisomem - Contos Folclóricos. Sales, Herberto. Ed.: Ediouro.

Histórias de Tia Anastácia. Lobato, Monteiro. Ed. Globo. 
 
Um conto de aperitivo:
 
Um encontro fantástico (João Anzanello Carrascoza)
Todos os anos eles se reuniam na floresta, à beira de um rio, para ver a quantas andava a sua fama. Eram criaturas fantásticas e cada uma vinha de um canto do Brasil. O Saci-Pererê chegou primeiro. Moleque pretinho, de uma perna só, barrete vermelho na cabeça, veio manquitolando, sentou-se numa pedra e acendeu seu cachimbo. Logo apontou no céu a Serpente Emplumada e aterrissou aos seus pés. Do meio das folhagens, saltou o Lobisomem, a cara toda peluda, os dentes afiados, enormes. Não tardou, o tropel de um cavalo anunciou o Negrinho do Pastoreio montado em pêlo no seu baio.
- Só falta o Boto - disse o Saci, impaciente.
- Se tivesse alguma moça aqui, ele já teria chegado para seduzi-la - comentou a Serpente Emplumada.
- Também acho - concordou o Lobisomem. - Só que eu já a teria apavorado.
Ouviram nesse instante um rumor à margem do rio. Era o Boto saindo das águas na forma de um belo rapaz.
- Agora estamos todos - disse o Negrinho do Pastoreio.
- E então? - perguntou o Boto, saudando o grupo. - Como estão as coisas?
- Difíceis - respondeu o Saci e soltou uma baforada. - Não assustei muita gente nesta temporada.
- Eu também não - emendou a Serpente Emplumada. - Parece que as pessoas lá no Nordeste não têm mais tanto medo de mim.
- Lá no Norte se dá o mesmo - disse o Boto. - Em alguns locais, ainda atraio as mulheres, mas em outros elas nem ligam.
- Comigo acontece igual - disse o Negrinho do Pastoreio. - Vivo a achar coisas que as pessoas perdem no Sul. Mas não atendi muitos pedidos este ano.
- Seu caso é diferente - disse o Lobisomem. - Você não é assustador como eu, o Saci e a Serpente Emplumada. Você é um herói.
- Mas a dificuldade é a mesma - discordou o Negrinho do Pastoreio.
- Acho que é a concorrência - disse o Boto. - Andam aparecendo muitos heróis e vilões novos.
- Pois é - resmungou a Serpente Emplumada. - Até bruxas andam importando. Tem monstros demais por aí...
- São todos produzidos por homens de negócios - disse o Saci. - É moda. Vai passar...
- Espero - disse o Lobisomem. - Bons aqueles tempos em que eu reinava no país inteiro, não só no cerrado.
- A diferença é que somos autênticos - disse o Negrinho do Pastoreio. - Nós nascemos do povo.
- É verdade - disse o Boto. - Mas temos de refrescar a sua memória.
- Se pegarmos no pé de uns escritores, a coisa pode melhorar - disse a Serpente Emplumada.
- Eu conheço um - disse o Saci. - Vamos juntos atrás dele! - E foi o primeiro a se mandar, a mil por hora, em uma perna só.
 
(Fonte: Revista Nova Escola)
 
Para saber mais, acesse:
 
 
 

27 de julho de 2013

Encerrando o mês das crônicas

Leitores queridos, para encerrar o mês dedicado às crônicas,  um presente: a primeira crônica de Carlos Drummond de Andrade, "Leilão do ar", publicada no Jornal do Brasil em outubro de 1969. Perceba no texto a ortografia vigente da época. Boa leitura! 
 
 
 
 
 


A última crônica

A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever.  
A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica
Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho -- um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular.
A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.
São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura — ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido — vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.
 Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.

       
(Fernando Sabino)
 
Extraído do livro "A Companheira de Viagem" (1965, p. 174.)