27 de julho de 2013

Encerrando o mês das crônicas

Leitores queridos, para encerrar o mês dedicado às crônicas,  um presente: a primeira crônica de Carlos Drummond de Andrade, "Leilão do ar", publicada no Jornal do Brasil em outubro de 1969. Perceba no texto a ortografia vigente da época. Boa leitura! 
 
 
 
 
 


A última crônica

A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever.  
A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica
Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho -- um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular.
A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.
São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura — ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido — vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.
 Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.

       
(Fernando Sabino)
 
Extraído do livro "A Companheira de Viagem" (1965, p. 174.)

 

21 de julho de 2013

Homem feliz na chuva

 
Voltava para casa, quando caiu a chuva das quatro da tarde. Violenta, tinha até granizo. Em volta, as pessoas corriam para se abrigar. Meu primeiro impulso foi correr também. Súbito, me contive. Para que correr? Estava a caminho de casa, não tinha compromisso, nada marcado, meus horários são determinados pelas minhas conveniências. Desde que abandonando patrões, empregos fixos, optei por tentar viver só de livros e algumas colaborações eventuais para a imprensa. Não me preocupo mais se é sábado, domingo, segunda. Pouco importa se a terça-feira vai ser feriado, portanto posso fazer uma ponte na segunda, ganhando um fim de semana mais comprido. Vou tomar chuva, decidi.
Continuei, debaixo da tempestade. Em um minuto, a camiseta molhada, calças ensopadas, bolsos cheios de água. Não estava de sapato e sim com uma sandália havaiana, muito brega. Andei devagar, deixando-me molhar mais e mais, até que não havia milímetro de meu corpo que não estivesse tomado pelas águas. Elas escorriam da cabeça, ombros, braços. Frias, estimulantes. Quatro e meia da tarde, pleno dia da semana e eu na chuva. Esta sensação só as crianças sabem o que é, os adultos perderam.
Pensando em criança, tomei outra resolução. Me meti na enxurrada que descia grossa pela rua Haddock Lobo. A esta altura, as primeiras águas tinham arrastado a sujeira, de modo que a enxurrada era límpida. Fui descendo, feliz da vida. Então, o carro esporte, importado, parou ao meu lado. O motorista abriu o vidro:
- Você é o Loyola, não é?
- Sou, respondi, contente por ter sido reconhecido até na chuva.
- Sobe aqui, te levo. Senão, vai ficar todo molhado.
- Já estou.
- Bem, sobe, não fica tomando essa chuva.
- Vou molhar todo seu carro.
- Não faz mal, o carro a gente enxuga. Sobe, que isso vai te fazer mal!
Sujeito bom, querendo praticar uma boa ação. Mas falava como os pais e mães da gente, na infância. Não faça isto, não faça aquilo. Tudo fazia mal: andar na chuva, tomar leite com manga, comer banana e laranja, olhar no espelho depois do almoço, tomar banho e sair na rua (entortava a boca), comer pepino e ir dormir. O motorista simpático era um homem de seus 30 anos, bem-vestido, gravata. O paletó dobrado com cuidado sobre o banco.
- Não vou entrar não!
- Entra, não pode ficar na chuva.
Engraçado o condicionamento em que a gente vive. Não pode tomar chuva. Nem querendo.
- Não quero entrar, entende? É uma decisão.
- Prefere ficar molhado?
- Prefiro.
- Molhado do jeito que está, não te incomoda?
- Nem um pouco, está uma delícia. Já tomou chuva assim, de tarde?
- Nunca.
- Nem uma vez?
- Não sou louco!
- Nunca teve vontade?
- Bem, acho que tive.
- Venha experimentar. Olha, a água correndo, fazendo cócegas nos pés, acariciando as pernas. Estou quentinho por dentro. Parece que estou flutuando.
- Deve ser bom.
- Bom? É ótimo.
- Sua cara é feliz, você está mesmo contente por estar aí. É, acho que tem razão! Se molhar numa chuvarada destas. Até que seria um programa.
- É a liberdade, meu caro!
- Seria engraçado chegar pingando feito um pinto no escritório. Iam ficar assustados, me internar.
- Então, por que não vem?
- Não posso.
- Claro que pode. Encosta o carro, abra a porta e tome chuva.
- Não é fácil assim.
- Não é difícil. O que te segura?
- Já imaginou? Não dá. Posso querer, estou querendo, mas é impossível.
- Depende de você.
- Dependo de muita coisa.
- Venha. Não quer vir?
- Quero, mas não posso.
- Falta coragem?
- Tenho coragem, o problema é outro.
- Qual é?
- Preciso voltar ao escritório, tenho uma reunião às cinco. Um mundo de gente depende de mim.
- Chega molhado.
- E perco clientes?
- Os clientes valem menos que uma chuva.
- Mas um dia, tomo chuva.
E se foi. Seco e infeliz. Tenho certeza que naquela tarde, um homem levemente inquieto, amargurado, presidiu uma importante reunião. Pensando talvez que seria melhor estar na chuva, os pés metidos na enxurrada, encharcando os mocassins italianos superengraxados. Quanto a mim, continuei pela chuva afora, livre e independente. Porque hoje em dia sou isso. Um homem em disponibilidade, sem empregos, sem alugar minha cabeça, dono do meu tempo, minhas decisões. E isto me custou apenas um ato de coragem. Me custou pouco, na verdade. Bastou dizer não a tudo que é estabelecido. 
(Ignácio de Loyola Brandão)

*Texto extraído da obra Crônicas para ler na escola.

 

14 de julho de 2013

"Chatear" ou "encher"

                                     
Um amigo meu me ensina a diferença entre "chatear" e "encher".
Chatear é assim:
Você telefona para um escritório qualquer na cidade.
- Alô! Quer me chamar por favor o Valdemar?
- Aqui não tem nenhum Valdemar.
 Daí a alguns minutos você liga de novo:
- O Valdemar, por obséquio.
- Cavalheiro, aqui não trabalha nenhum Valdemar.
- Mas não é do número tal?
- É, mas aqui não trabalha nenhum Valdemar.
 Mais cinco minutos, você liga o mesmo número:
- Por favor, o Valdemar já chegou?
- Vê se te manca, palhaço. Já não lhe disse que o diabo desse Valdemar nunca trabalhou aqui?
- Mas ele mesmo me disse que trabalhava aí.
- Não chateia.
 Daí a dez minutos, liga de novo.
- Escute uma coisa! O Valdemar não deixou pelo menos um recado?
O outro desta vez esquece a presença da datilógrafa e diz coisas impublicáveis.
 Até aqui é chatear. Para encher, espere passar mais dez minutos, faça nova ligação:
- Alô! Quem fala? Quem fala aqui é o Valdemar. Alguém telefonou para mim?
 
(Paulo Mendes Campos)